UMA PINTURA RICA E ONÍRICA
 
 
Fui ao atelier do Luís Athouguia na Parede num dia de Maio de intenso calor. No caminho, passámos os dois à beira das praias que inusitadamente regurgitavam de gente. Ainda não era Verão e já as pessoas se despiam num arrojo automático. A estranheza destas perturbações climáticas acabou no atelier do Luís Athouguia onde levei com um banho de frescura. Na realidade, o que vi naquela tarde, pastel e aguarelas, deixou-me mais vivo e cheio de esperança. O frescor dos sonhos vinha ao meu encontro.
O grande poeta francês Gérard de Nerval, que viveu uma vida estranha mas muito coerente, disse antes de morrer: «Le rêve est une seconde vie» (O sonho é uma segunda vida). Há já muitos e muitos anos (precisamente desde a sua primeira exposição em 1983) que Luís Athouguia persegue esta via onírica para o seu bem e para o nosso. Mas nele, o sonho é genético. Nascido numa família de pintores, ele não faz mais que continuar essa tendência natural que conduz à mais emotiva das realizações artísticas – a beleza absoluta que transporta.
Basta só vermos o inaudito quadro “Carnaval Quotidiano“, para ficarmos subjugados pelo poder mágico do pintor. Apoiando-se sobre umas cores soberbas, onde o real esforço parece despenhado (na realidade ele só está escondido), Athouguia obriga-nos a parar na vida. Tal é o choque pictórico que se materializa diante dos nossos olhos. Emoção e saber. Força criativa. Presença volantim que se renova. O espectador adquire todos os direitos importados. Max Ernst não está longe, mas o valor de Luís Athouguia não fica desmentido, pelo contrário, o pintor da Parede fica muito bem, independente e só, ao lado do pintor surrealista amigo de Breton.
«Só gosto de considerar um quadro como uma janela; e a partir daí a minha única preocupação é de saber para onde é que ela dá» dizia André Breton. Não só o quadro “Carnaval Quotidiano“, mas todos os quadros onde reina o formidável pastel de Luís Athouguia, são janelas abertas para a emoção. São janelas que nos fazem ver vidas guilhotinadas mas que gozam de uma faculdade de locomoção desmesurada. São janelas essenciais que deixando para trás o quotidiano mais prático se abrem a velozes mares de pensamento. São janelas incessantes que dão para montanhas movediças de sonhos. Não tenhamos medo de o dizer: o pastel substancial de Athouguia ilumina a nossa noite e traz-nos a pureza dos primitivos tempos em que podíamos tocar as estrelas com as mãos.
Mostrando-se como um modo adjacente, e não secundário, em relação ao fantástico geral dos quadros de maior dimensão em pastel, as pequenas aguarelas de “Imaterialidades“ são pequenos pensamentos elásticos. Maravilhas da filigrana dos sonhos. São materialidades esboroadas à maneira de André Masson e como este pintor que trabalhou com a areia nos seus quadros também Athouguia se arquetipa aqui numa posição criativa que esfacela o tempo minúsculo dos devaneios. Assim cada uma das suas pequenas aguarelas é um relógio de areia que nos paralisa. E nos faz sonhar. A chuva miudinha dos sonhos tranquilizadores. Assim são estes quadrozinhos. Poderosos tranquilizadores contra a austeridade do nosso mundo.
Em resumo: esta exposição de Luís Athouguia, “Dissonância Surreal“, que se dirige para o país do sal é um verdadeiro acontecimento num momento em que o mundo da pintura vive uma crise de valores e uma crise de críticos de pintura, num universo onde reina o artifício, o oportunismo, a mediocridade e, claro, a uniformização.
Diga-se: ninguém actualmente em Portugal faz uma pintura destas. O Luís Athouguia é único e inclassificável (não é surrealista nem deixa de ser quando afirma a sua reticência!) e é toda esta volúpia do sonho que faz a sua força. E também o seu equilíbrio. Agora que morreram o Mário Botas, o Cesariny, o Álvaro Lapa, resta-nos o Luís Athouguia para nos conduzir ao país onde os coelhos usam relógios de pulso e as meninas têm mais de dois seios no peito.
MANUEL DA SILVA RAMOS