FERNANDO GRADE O FUNDO DO MAR PERTENCE AOS FUNDOS DO UNIVERSO. Há muitos anos, em Amsterdam, no Dam, travei conhecimento com um casal exótico (ele - mulato do Senegal; ela - francesa de Ardennes). Aqueles dois e eu éramos, ao tempo, balzaquianos, mas por baixo, ou seja, idades de 30 e pouco, e falávamos em Francês sobre pintura e seus arredores. A rapariga chamava-se Francine, nunca esqueci; o senegalês, cujo nome não me lembro, era de Dakar, isso fixei. O jovem pretendia ganhar a Holanda em arte, tinha cabelos esbaforidos de hippy e, no bolso, uma mancheia de travel-cheques do papá africano. Soba do mundo. O jovem viageiro mostrou-me alguns desenhos e aguarelas, e eu disse-lhe: -Tu trabalhas pouco. O trabalho é o centro do universo! Não há pintor sem trabalho, manual ou mental. E ter os olhos abertos para. Por antinomia, lembrei-me do que vou dizer a seguir. O camarada d'artes Luís Athouguia apresenta-se como um trabalhador emérito. Procura. Impõe-se na luta pela forma. A pintura requer a aquisição de uma gramática pessoal. Mas quero fazer alguma história, começando por alfa. A primeira presença (quer individual quer colectivamente) de L. Athouguia, no concelho do Seixal, denota, da parte do Autor, as mesmas preocupações estético-espaciais que norteiam, desde o início da actividade, a sua obra plástica. Nascido em Cascais, no ano de 1953, L.A. começa a expor 30 anos depois. Reconhece-se que a linguagem esgrimida não tem sofrido sobressaltos ou abanões, porquanto, descoberto o trajecto próprio, gravitando numa zona de luz e sombra, de facto, peculiar e brandindo um entendimento transformista do acto estético, jamais Athouguia desmanchou esse equilíbrio formalista e vivencial, esse modo incomum de dispor os matizes no plano. Tais pinturas, muitas vezes soberbas, constroem-se no doseamento das cores, na interacção, tudo é conseguido a pulso, já que existe um labor muito consistente. Não existe presença humana, memórias de casas ou de corpos glorificados ou destruídos nos suportes de L.A. Tudo acontece (ufano ou soturno, embruxado ou luminar) nas profundezas do mundo marinho ou nos espaços siderais em fora, mormente nestes últimos referentes onde através dos quais - mais milhão ou menos milhão de anos - a matéria irá cansar-se de criar, perderá eficácia e vai regressar ao ponto zero e quedo e misteriosamente pacato de que saiu. Para depois, decerto – decerto? - voltar a explodir... A linguagem do Autor serpenteia à volta e no âmago de uma meada cromática de matrizes fascinantes onde a luz (do étimo latino luce) é rainha, não consorte, não de par de cama, mas rainha-mor; trata-se de uma luz vivaz, que já fecundou o pó, pô-lo a caminho, rumo à pátria da água. Abeiramo-nos, afirmativamente, de um sonho com maiúscula, mas, para lá da construção desse habitat onírico, descortina-se um adestramento superconseguido na combinatória das cores, que são fixadas ou impostas ao suporte impelidas pela força táctil das mãos. Porque é pintura a pastel seco. Daí que o modus faciendi nunca passe pela utilização de pincéis ou trinchas ou outros utensílios. A mão dá a cor e confere a dimensão desmedida. O espaço, mesmo pictórico preenchido no todo, respira sempre. Em termos judicativos, isso satisfaz-me muito. Por opção pessoal, agrada-me imenso, ou não fosse eu adepto da espacialidade, ou não fosse o autor destas linhas um dos fundadores (1964-1965) do Movimento Desintegracionista Português. A verdade é que a mão à solta significa trabalho. Perseverança. Arte. '...golpe de asa', parafraseando o genial poeta e suicida Mário de Sá-Carneiro. Foi o esforço e foi o trabalho que agigantaram o macaco e fizeram-no ascender a homem. Ao longo de muitas, muitíssimas eras. Os pintores vivem especialmente dos olhos e das técnicas pessoais que tenham conseguido desenvolver. Este paradigma constitui o cerne da estilística de Athouguia. Porque as boas intenções não bastam. Os conteúdos têm sido sempre os mesmos ao longo da História. Os autores originais são os que conseguem contar de jeito novo as histórias/estórias velhas. Luís Athouguia afigura-se-nos ser um artista renovado, com uma pulsão encantatória nos objectos visuais que desvenda. Acaba, outrossim, por mostrar-se cénica a sua proposta; em definitivo, situada entre um diapasão de ruptura e o gosto lavado que a Arte assumida no tempo confere, desde os Gregos (de notável qualidade de pensamento, mas profundamente ignorantes...) até ao signo dos foguetões sábios, dos beijos cibernautas e dos corações feitos de lata e arames.